Foto: Grafite do artista Banksy
Segundo aponta a OXFAM, o 1% mais rico do Brasil recebe mais de 25% de toda a renda nacional, sendo que os 10% mais ricos recebem o mesmo que os demais 95% da população. Esses dados podem ser relacionados compesquisas recentes que indicam que no Brasil é 14 vezes mais difícil um pobre melhorar de vida do que alguém rico manter o status quo. Conforme apontado pelo relatório “Efeito redistributivo da política fiscal”, elaborado pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, o Brasil funciona como um “Robin Hood às avessas”, pois transfere pouca renda para os 10% mais pobres, enquanto que distribui benefícios entre os 40% mais ricos da população[1].
Esse fenômeno é endossado por relatórios que apontam o Brasil como um dos países maior índice de desigualdade no mundo. Conforme destaca Piketty, a concentração de renda no Brasil é tão grande que os brasileiros mais ricos detêm uma riqueza concentrada maior do que os sheiks do Oriente Médio. Para um país que se pretende republicano, esse abismo social revela nada mais do que uma verdade inconveniente: de que por trás da máscara institucional da equidade, permanece no Brasil uma genuína sociedade de castas e privilégios.
Há diversos fatores envolvidos na manutenção desse grau de desigualdade. A abolição tardia da escravidão e o protecionismo histórico aos “donos do poder” são alguns elementos que não podem ser descartados de um diagnóstico mais panorâmico da desigualdade enfrentada hoje no Brasil. Chama-se atenção, contudo, para um fator que insiste em ficar fora da agenda de debates: o modelo tributário adotado em terras brasileiras.
A tributação, embora não seja causa exclusiva para a perpetuação da desigualdade, em muito contribui para que ela seja mantida como está. Isso ocorre porque no Estado fiscal, em que as despesas públicas são custeadas por meio de tributos, a distribuição do ônus entre os signos presuntivos de riqueza – patrimônio, renda, salário e consumo – influi diretamente na capacidade de autorrealização dos sujeitos. De fato, a concentração da tributação em um signo em detrimento de outro tem o poder de afetar tanto a capacidade de ação do Estado quanto as possibilidades de ação dos indivíduos em sociedade.
Se um modelo tributário onera pouco o acesso a bens e serviços, a consequência lógica é que haja uma sociedade em que todos consigam se beneficiar com mais facilidade das demandas de consumo. Onerando-se mais a tributação sobre o patrimônio, cria-se uma sociedade em que é mais difícil haver o acúmulo de propriedade. Da mesma forma, ao haver uma tributação progressiva sobre a renda, edifica-se uma sociedade em que quem ganha mais, paga mais, o que redistribui, por meio da arrecadação, as riquezas adquiridas pela exploração do capital.
Na Europa, de modo geral encontra-se um modelo tributário que executa uma tributação maior sobre a renda e o patrimônio, o que vem acompanhado por um dos índices de menor desigualdade do mundo. A partir disso, especialmente de uma maior tributação sobre a renda e as heranças, os europeus mais ricos contribuem mais para o sustento do Estado e dos direitos sociais, evitando-se o acúmulo de riquezas entre gerações, e, consequentemente, a desigualdade social.
No Brasil, a situação é inversa. Com uma tributação voltada para o consumo, os detentores de patrimônio e de alta renda se beneficiam de uma política que estimula a manutenção de privilégios. A elite, que se rejubila com os seus discursos inflamados sobre a meritocracia, conquista ativos cada vez maiores por meio de artifícios como a isenção sobre os dividendos, apropriando-se de lucros verdadeiramente astronômicos, o que a permite sustentar um padrão de vida incompatível com a realidade da grande maioria da população.[2]
Com alíquotas que variam de 3 a 8%, a transmissão de patrimônio causa mortis praticamente não é tributada, enquanto que em países ditos liberais, como os Estados Unidos, o mesmo tributo chega a ter alíquotas de até 40%. Nessa perspectiva, torna-se relativamente fácil encontrar no Brasil gerações de famílias que possuem uma vida confortável ao custo de uma riqueza praticamente intocada pelo Estado. Enquanto que os mais pobres, que não têm absolutamente o que herdar, precisam trabalhar a vida toda para adquirir patrimônio, os mais ricos podem tranquilamente manter um padrão sem necessariamente dispender o mesmo esforço que os seus ascendentes.
Além disso, a opção brasileira de tributar o consumo também é altamente excludente na medida em retira uma parcela maior do patrimônio dos mais pobres em comparação aos mais ricos. Isso ocorre porque, embora ambos paguem o mesmo valor ao realizar compras, o valor dos tributos pagos ao final, observado em relação à renda auferida, torna-se proporcionalmente maior para o mais pobre, que usa uma parcela maior dos seus rendimentos no pagamento desses tributos.
A situação não melhora em relação à tributação sobre a renda. Hoje o Brasil adota poucas alíquotas progressivas (7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%), o que chama a atenção, dado que houve períodos da história em que chegou a adotar 14 faixas diferentes, com uma alíquota máxima de 65%, modelo próximo do que é adotado atualmente em países desenvolvidos. Ademais, como o governo não reajusta a tabela do imposto de renda, encontra-se hoje um indevido aumento na arrecadação, pois os salários tendem a aumentar com a inflação, enquanto que a base de cálculo do imposto continua a mesma. O resultado disso é que, além do imposto ser pouco progressivo, ele incide sobre rendas que deveriam estar dentro da faixa de isenção, o que apenas prejudica aqueles que possuem rendimentos mais baixos.
Na esteira desse entendimento, dados apontam que só em 2013, 51,28% da receita dos impostos teve origem no consumo de bens e serviços, sendo 24,98% na folha de salário, 18,10% na renda e apenas 3,93% na propriedade. Considerando que os mais pobres são assalariados, desprovidos de propriedade imobiliária, o que se conclui é que, em termos fiscais, através do consumo, são eles que têm sustentado o Brasil – muito embora ironicamente não sejam os mais pobres os maiores beneficiários dos serviços prestados com a receita arrecadada.
Conforme aponta o Banco Mundial, no Brasil, as desonerações aplicadas em matéria de saúde, em termos de imposto de renda, fazem com que se divida entre a população inteira os custos da saúde privada da elite. Segundo levantamento, aqueles que auferiram mais de 320 salários tiveram abatidos em média R$ 18,1 mil por pessoa em razão de gastos com saúde. Do mesmo modo, o Banco Mundial afirma que os investimentos em educação pública superior são regressivos, dado que o povo sustenta um ensino de alto nível que é usufruído preponderantemente pelos mais ricos, que, apesar do sistema de cotas, ainda são a grande maioria nas universidades públicas.
A partir disso, devemos pensar: como é possível haver um sistema estruturado dessa forma? Como é possível que uma ordem democrática possa ter uma política tributária tão excludente? A questão é simples: conforme declarouMarc Morgan Milá, a desigualdade no Brasil é – e sempre foi – uma questão de escolha política. Escolhemos – direta ou indiretamente – um sistema que onera os mais pobres em detrimento dos mais ricos, um sistema que permite que 6 pessoas possuam o mesmo patrimônio que toda a metade da população mais pobre, um sistema que ignorantemente se rejubila em afirmar que todos têm a mesma oportunidade de crescer na vida.
A história ocidental mostra que o Brasil há muito tem tratado a tributação como simples forma de arrecadação, e, com isso, tem oportunamente esquecido o seu papel de transformação social. Já em seus primórdios, no período colonial, as despesas que tinham a tributação como fonte de recursos variavam entre a manutenção do Estado para fins exploratórios e o pagamento de luxos para a nobreza. O casamento da infanta D. Catharina com Carlos II, da Inglaterra, em 1661, por exemplo, foi subsidiado inteiramente por tributos pagos pelos colonos em um período de 16 anos. Contudo, apesar do termo fixado, não eram raras as contribuições que se estendiam pelo tempo, cujo pagamento se automatizava ao ponto de se continuar pagando as núpcias de membros da família real que inclusive já haviam falecido.[3]
Infelizmente, essa tradição criada no Brasil, que reduz a política tributária à mera expressão da força do Estado, ainda permanece enraizada no senso comum dos responsáveis pelo desenho do sistema tributário nacional. Os tributos ainda são instituídos ou aumentados de acordo com as necessidades do Estado, o que, curiosamente, não implica diretamente nas necessidades do povo, conforme se percebe ao lume dos constantes aumentos de custos e cortes de gastos. Se antigamente a tributação servia para atender casamentos reais, festas, guerras ou para amparar elites agrárias, hoje a situação não é diferente – diferentes são apenas os beneficiários da tributação, prováveis herdeiros de uma nobreza disfarçada de classe média.
Nesse sentido, é preciso concordar com Buffon[4], apregoando-se a necessidade de se construir os sentidos das políticas tributárias por meio do que preceitua Constituição Cidadã de 1988. Urge observar o norte da dignidade humana, especialmente a proteção ao mínimo existencial em termos tributários. O primeiro passo para tanto é reconhecer a incidência efetiva de princípios como a progressividade e a capacidade contributiva, para que a tributação sobre a renda e o patrimônio deixem para trás o seu efeito meramente decorativo para assumir uma dimensão real em prol de uma sociedade mais justa e solidária.
Além disso, uma tributação conforme a Constituição de 1988 não pode permitir a existência de privilégios como a isenção dos dividendos, circunstância que apenas beneficia uma classe mais abastada da população. Somado a tanto, em relação à tributação sobre o consumo, deve ser assumida a obrigatoriedade da observância ao princípio da seletividade, para que bens e serviços vinculados ao mínimo existencial – tal como a energia elétrica, ainda absurdamente tributada – possam ter seu acesso universalizado, sem onerar os mais pobres.
Por certo que essas transformações exigem uma mudança drástica para serem efetivadas, admitindo-se a vontade de construção de uma sociedade em que todos possam ter condições de concretizar os seus planos de vida. Antes disso, é preciso reconhecer que a sociedade encontrada hoje no Brasil não é meritocrática, mas favorece relações pessoais, privilegia o capital e subjuga aqueles que não se encontram entre os “bem-nascidos”. A partir disso, é possível abraçar soluções para esse quadro, as quais devem incluir novas formas de gestão da política tributária, de forma a torná-la menos exclusiva e mais redistributiva.
Os mais ricos, que controlam as discussões públicas e os rumos da política nacional, em regra não estão engajados nesse plano. Os mais pobres, vítimas desse sistema perverso, em sua esmagadora maioria sequer conhecem o modus operandi da tributação brasileira. Nesse sentido, em meio a um debate mal concebido, composto por mais perguntas do que respostas, uma questão parece se mostrar preponderante: até quando ficaremos silentes diante desse quadro malicioso?
Augusto Carlos de Menezes Beber é Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com Bolsa Capes/Proex. Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Advogado. E-mail: augusto_beber@yahoo.com.br
[1] BRASIL. Ministério da Fazenda. Efeito redistributivo da política fiscal no Brasil. Brasília: Ministério da Fazenda, 2017. Disponível em : <http://seae.fazenda.gov.br/destaques/redistributiva/efeito_redistributivo_12_2017.pdf>. Acesso em: 29 jan. de 2018.
[2] Nesse sentido, é interessante observar que, segundo um estudo do IPEA, se os lucros e dividendos não fossem isentos no Brasil – situação que só se repete na Estônia – haveria uma arrecadação de mais de R$ 43 bilhões, o que poderia servir como alternativa às políticas de austeridade que dominam a agenda política hodierna.
[3] AMED, Fernando José; CAMPOS NEGREIROS, Plínio José Labriola de. História dos tributos no Brasil. São Paulo: SINAFRESP, 2000. p. 56.
[4] BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
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