Lançamento virtual da obra acontece no Dia Internacional da Mulher; organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, trabalho revisita conceito de antologia publicada na década de 1970.
Atravessada pelos interditos da ditadura militar brasileira e os efeitos desse nebuloso momento na produção artística da época, a professora, escritora e crítica literária Heloisa Buarque de Hollanda voltou-se para si de modo a reconhecer os pares: quem está fazendo poesia em meio a uma seara de silenciamento? E o que os versos desses artistas ecoam, o que trazem como assunto e substância?
A resposta culminou no clássico “26 poetas hoje”, lançado em 1976 pela editora Aeroplano. A obra – referência para a compreensão da atmosfera daquele período por meio do ofício de literatos – abraçou sobretudo o expediente do fazer contracultural, contemplando importantes figuras da dita geração mimeógrafo, também conhecida como “poesia marginal”.
Nomes como Francisco Alvim, Cacaso, Torquato Neto, Chacal, Ana Cristina Cesar, Isabel Câmara, entre outros, irrompiam os verbos e gestos de uma juventude que se lançava, sem amarras, ao fazer poético. Distante das grandes editoras e tendo a feitura artesanal como principal instrumento e norte, lançaram as bases para uma variedade de artistas das gerações posteriores.
É a partir desse diálogo entre passado e presente que a mesma Heloisa Buarque de Hollanda retoma o conceito do livro, fomentando um novo panorama na área. “As 29 poetas hoje”, lançado no último mês pela Companhia das Letras, chega ao público apresentando um recorte específico, com alguns dos principais nomes da nova geração de mulheres da poesia brasileira.
O exemplar chega às mãos do público 45 anos depois do primeiro volume, motivo suficiente para que a editora à frente da empreitada traga as duas obras juntas, com a reedição de “26 poetas hoje” e o mais novo título do projeto. O lançamento virtual deste acontece na segunda-feira (8), Dia Internacional da Mulher, às 18h30, pelas redes sociais da Companhia das Letras e da livraria Megafauna, com a presença de Heloisa e das autoras.⠀
Referências
Na apresentação de “As 29 poetas hoje”, a organizadora destaca a influência de Ana Cristina Cesar no “jovem cânone da poesia de mulheres”, composto por Angélica Freitas, Marília Garcia, Ana Martins Marques, Bruna Beber e Alice Sant’Anna – também editora do livro.
A seleção dos nomes que integram a antologia, inclusive, vai ao encontro de uma produção alinhada à tessitura criativa de Ana C, bem como congrega as que mais influenciaram e mesmo se constituíram como referência para a poesia mais jovem praticada entre nós.
No texto de apresentação, Heloisa também faz um contraponto com a “novíssima geração”, retratada no livro. Segundo ela, a maior influência para as 29 poetas parece ser Angélica Freitas e seu “Um útero é do tamanho de um punho” (Companhia das Letras, 2017).
“Angélica abriu para as jovens o caminho da desobediência, do corpo, de que escrever é investigar o avesso das regras que regem a poesia”, sublinha a pesquisadora. “Ao mesmo tempo, ela é, em sua geração, a que mais abertamente explicitou sua posição feminista”.
A estudiosa ainda considera que o diferencial das novas poetas parece ter sido a conquista de um capital inestimável: um ponto de vista próprio e irreversível e o enfrentamento sistemático do cotidiano, dos desejos e custos de ser mulher, já bem distante do que se conhecia como linguagem e/ou poética de mulheres.
“A nova experiência com a linguagem é a consequência imediata dessa conquista. Nesse contexto, o corpo e sua fala ganham terreno progressivamente: o corpo – seus direitos, seus sentidos, seu alcance – se expressa sem muitas voltas, numa dicção direta, talvez até agressiva, mas sempre procurando novos instrumentos de linguagem, métodos criativos, a garganta profunda da poesia”, situa Heloisa.
Adelaide Ivánova, Mel Duarte, Cecília Floresta, Stephanie Borges, Luiza Romão, Yasmin Nigri e Bruna Mitrano são algumas das poetas que abraçam essa perspectiva e estão presentes na publicação. A cena poética cearense também é contemplada no material: nina rizzi, Jarid Arraes, Érica Zíngano e Dinha representam o Estado com algumas de suas mais relevantes criações, demonstrando a potência e o alcance do que é feito por aqui.
Multiplicidade de questões
Ao Verso, Érica Zíngano explica que o convite para participar da antologia chegou por e-mail quando ela ainda estava morando no exterior, em Berlim. “Desde 2019 voltei a morar no Ceará e, para mim, é muito legal que o livro saia agora, durante a pandemia. Porque, no meio desse isolamento social, isso me dá um sentimento muito bom de grupo, mesmo que eu não esteja fazendo parte de nenhum ou de um coletivo específico”, confessa.
Para ela, uma publicação realizada nesses moldes nos faz pensar em termos de um território comum, principalmente levando em consideração que escrever é uma atividade muito solitária. “Uma antologia desse gênero tende a querer criar um chão partilhado pela diversidade, que penso ser uma escolha da Heloísa. Eu tendo a ler essa escolha como uma escolha política. Como diferentes poéticas estão entrelaçadas num debate político, atravessado pela linguagem pelo fazer literário”, diz.
São quatro os poemas sob a assinatura de Érica presentes na obra. Os textos foram selecionados diretamente da internet – publicados em diferentes momentos de seu trabalho poético – e em revistas de literatura. As questões que suscitam são várias e atravessam outras criações da poeta, tais como gênero, autobiografia, erotismo e alguma metafísica.
“Gosto bastante de autores anti-líricos, como Nicanor Parra (1914-2018), por exemplo, então pode ser que o leitor pense que meus poemas não são poemas de verdade, também porque trabalho com muita colagem de vozes, de outros textos”, explica. “Acho que, de maneira geral, minhas criações estão sintonizadas com questões bastante atuais da poesia contemporânea, e estou feliz que mais leitores possam descobrir e ter contato com essas tendências. É sempre uma alegria poder ser lida e contribuir para novos horizontes de leitura, num plano estético mesmo”.
Descentralização
A visão da poeta – cuja relação com a literatura é fundada na experiência do trauma e da psicanálise, tendo em vista o falecimento do pai ainda quando criança – é que, com esse projeto, Heloisa Buarque de Hollanda constrói uma linha que atravessa o livro de 1976 e o de agora.
“O pensamento sobre literatura trabalha muito por comparação, cotejando diferentes obras. Então, num certo sentido, esses dois livros acabam funcionando como espelhos um do outro, espelho das diferenças. Pra mim, que li a antologia dos anos setenta quando comecei a escrever, é um sentimento muito bom de poder participar de um debate que hoje se apresenta de forma bem mais ampla, tendo em vista que a obra dos anos setenta era local, incorporava uma cena que estava acontecendo no Rio de Janeiro, enquanto que essa nova obra, de agora, se abre pra tentar captar poéticas de vários lugares do Brasil”, diz.
Sob outro contexto, ao voltar os olhares para a própria terra, ela percebe que o Estado possui uma cena muito forte de saraus, movimentos responsáveis por descentralizar o debate sobre a produção contemporânea. “Isso no que diz respeito a questões importantes, como centro/periferia; discutindo sobre noções de cânone, de valor, de representatividade. Venho acompanhando como posso, com muita alegria e entusiasmo, as coisas que estão acontecendo por aqui”, festeja.
Tantas mulheres
Um dos nomes mais fortes dos saraus de Fortaleza, nina rizzi traz à superfície uma particularidade do livro: por meio de QR Code, é possível escutar algumas criações reunidas no exemplar. A ideia partiu de Alice Sant’Anna, editora da obra, ao se deparar com o modo como as slammers da publicação ecoavam sua poesia. Sendo assim, microfone aberto para todas – o código pode ser encontrado ao término da seção das poetas que escolheram declamar os próprios versos.
Além desse detalhe, nina tece considerações a respeito da forma como encara a obra. Para ela, o trabalho merece destaque por possuir um caráter muito diverso de mulheres. “Você tem mulher preta, indígena, da quebrada, trans, enfim, são muitas. O ‘eu’ mulher não está fechado dentro de uma ideia, você abre a possibilidade de pensar a mulher como ‘as mulheres’. Não como um tubo, uma coisa única, com vagina, peito e dinheiro, com branquitude. A mulher na verdade como mil árvores, como algo muito maior”, dimensiona.
Cinco poemas de autoria dela podem ser lidos no material, advindos dos livros “quando vieres ver um banzo cor de fogo” (Patuá, 2017) e “sereia no copo d’água” (Jabuticaba, 2019). Os versos refletem, de alguma maneira, o corpo da poeta no mundo, o seu ser mulher no cotidiano. “Todas as minhas intersecções enquanto mulher, preta, diante das minhas sexualidades, como tudo isso se tensiona com o mundo e com as outras pessoas que eu vou encontrando”, pontua.
Não à toa, alguns poemas são mais combativos e outros mais amorosos. Em ambas as angulações, busca-se o uso de uma linguagem que esteticamente rompa com o padrão de escrita do cânone branco, europeu, deixando fluir outros sensos de criatividade e performance literária. Um desejo que se alinha à forma potente de fazer literatura no Ceará hoje.
“Falando como uma pessoa daqui, de dentro, vejo que a produção poética de nosso Estado é muito rica. Historicamente já somos uma potência literária; contemporaneamente, muita gente continua escrevendo, e de diversas maneiras – escrever não é só com papel, caneta, ISBN. Tem pessoas fazendo poesia de busão, escrevendo nos saraus… Muita efervescência cultural e muita gente incrível. Não é só poesia porque é militância, não. Tem essa questão estética, que é muito apurada”, percebe.
Integrando a novíssima geração de poetas brasileiras, nina, ao olhar para as pessoas que estão com ela nessa seara, valoriza sobretudo a quantidade de artistas primando pelo fazer. “Tem tanta gente, eu nunca vou dar conta de saber quem é essa novíssima geração de poetas. E eu fico feliz que hoje é diferente de quando eu era adolescente. Naquela época, a única pessoa para mim que era poeta era quem estava na estante da minha escola. E a única mulher ali era Cecília Meireles. Olha isso! A única mulher, e todos os caras estavam mortos. Hoje a gente tem a possibilidade de dizer isso, que existe uma novíssima geração de poetas, que está nos livros e fora deles também”.
Fica, assim, o convite para que “29 poetas hoje” não apenas suscite novas leituras sobre a poesia contemporânea feita por mulheres, mas também inspire a fruição literária. “Como a Audre Lorde disse antes de mim, a poesia não é um luxo. Quando a gente escreve, não é algo para parecer bonitinho, para colocar ali na estante o livro como se fosse um bibelô. É algo que – ainda mais se forem mulheres pretas, indígenas, periféricas – é revolucionário, que te liberta. Então, sim, espero que, quando as pessoas lerem a obra, se sintam instigadas a buscar outras novíssimas poetas e se sintam inspiradas a escrever também”, torce.
Fonte-diariodonordeste.verdesmares.com.br
Blog Nilson Técnico Bosch.
Nenhum comentário:
Postar um comentário